Para além de assuntos relacionados com água, tulipas e queijo, os Holandeses são conhecidos pela sua tolerância cultural, liberalismo e pela gestão sensata de espaços urbanos. Se as primeiras duas qualidades dificilmente se aplicarão ao país no seu todo (e lá se vai o meu visto de residência!), certamente encaixam perfeitamente no perfil de Amesterdão e seus habitantes - no geral, claro, mas como uma amiga sabiamente profetizou "em geral, gosto pouco de generalizações!"
Cosmopolita, ruas frenéticas (para o padrão Holandês) com a multidão de visitantes, Amesterdão combina de forma única as vantagens de uma aldeia e de uma cidade moderna. Porém, a escassez de habitação intrínseca, gera inúmeros problemas - nomeadamente para quem tem crianças. A maior parte dos Holandeses cultiva extremosamente a independência da sua família nuclear em relação à família em geral; adicionando a isto facto de que os parentes geralmente vivem longe, a mais de 20 minutos de bicicleta, deixar os filhos com os avós está fora de questão. Assim, um kinderdagverblijf é essencial: literalmente, criança-dia-ficar.
Cosmopolita, ruas frenéticas (para o padrão Holandês) com a multidão de visitantes, Amesterdão combina de forma única as vantagens de uma aldeia e de uma cidade moderna. Porém, a escassez de habitação intrínseca, gera inúmeros problemas - nomeadamente para quem tem crianças. A maior parte dos Holandeses cultiva extremosamente a independência da sua família nuclear em relação à família em geral; adicionando a isto facto de que os parentes geralmente vivem longe, a mais de 20 minutos de bicicleta, deixar os filhos com os avós está fora de questão. Assim, um kinderdagverblijf é essencial: literalmente, criança-dia-ficar.
Abertos, liberais, práticos
De entre os muitos e bons exemplos de abertura mental e pensamento prático que Amesterdão tem para oferecer, o meu favorito localiza-se no sítio perfeito para procurar ligação ao Divino, prazer e reconfortante redenção: o Red Light District, naturalmente. Mais precisamente, a Oudekerk (Igreja velha). Esta igreja é o mais antigo edifício da cidade, um dos poucos que sobreviveu aos fogos de 1421 e 1452, responsáveis pela destruição da maior parte da urbe. Construir em madeira passou a ser proibido desde então e uma inovação conferiu às casas Holandesas a sua aparência típica: a utilização de paredes de tijolos, pequenos e leves e baratos. Mesmo no coração do Red Light District, a Oudekerk está rodeada por um dos inúmeros pitéus que o menu sexual da área tem para oferecer: as T.M.O.P.E. - Trabalhadoras Muitíssimo Obesas de Pele Escura, vulgarmente conhecidas como NG - as Negras Grandes.
Assim, circundando a Oudekerk podemos admirar a imponência do edifício Gótico (o meu corrector automático insiste em corrigir imponência por impotência!), bem como uma miríade de profissionais do sexo. Ser guia turístico em part-time tem-me permitido trilhar estas ruas com muitos turistas de todo o mundo, nomeadamente Americanos, que ficam particularmente impressionados com as contrastantes realidades culturais do mundo "Ocidental".
Mas o grande choque está ainda para vir, e o espanto reina quando passamos pelo lado Norte da praça: do lado oposto à igreja, entre as janelas repletas de mulheres semi-nuas, descobrimos o Prinses Juliana Kinderdagverblijf, onde os pais Holandeses deixam os filhos durante o dia. Portanto, igreja à esquerda, prostitutas à direita - que trabalham 24/7-, jardim de infância ao meio. Nada mal, para exercitar a abertura mental precoce, toch?
De entre os muitos e bons exemplos de abertura mental e pensamento prático que Amesterdão tem para oferecer, o meu favorito localiza-se no sítio perfeito para procurar ligação ao Divino, prazer e reconfortante redenção: o Red Light District, naturalmente. Mais precisamente, a Oudekerk (Igreja velha). Esta igreja é o mais antigo edifício da cidade, um dos poucos que sobreviveu aos fogos de 1421 e 1452, responsáveis pela destruição da maior parte da urbe. Construir em madeira passou a ser proibido desde então e uma inovação conferiu às casas Holandesas a sua aparência típica: a utilização de paredes de tijolos, pequenos e leves e baratos. Mesmo no coração do Red Light District, a Oudekerk está rodeada por um dos inúmeros pitéus que o menu sexual da área tem para oferecer: as T.M.O.P.E. - Trabalhadoras Muitíssimo Obesas de Pele Escura, vulgarmente conhecidas como NG - as Negras Grandes.
Assim, circundando a Oudekerk podemos admirar a imponência do edifício Gótico (o meu corrector automático insiste em corrigir imponência por impotência!), bem como uma miríade de profissionais do sexo. Ser guia turístico em part-time tem-me permitido trilhar estas ruas com muitos turistas de todo o mundo, nomeadamente Americanos, que ficam particularmente impressionados com as contrastantes realidades culturais do mundo "Ocidental".
Mas o grande choque está ainda para vir, e o espanto reina quando passamos pelo lado Norte da praça: do lado oposto à igreja, entre as janelas repletas de mulheres semi-nuas, descobrimos o Prinses Juliana Kinderdagverblijf, onde os pais Holandeses deixam os filhos durante o dia. Portanto, igreja à esquerda, prostitutas à direita - que trabalham 24/7-, jardim de infância ao meio. Nada mal, para exercitar a abertura mental precoce, toch?
Mas há alguma Virgem neste história?
Falámos já de crianças, senhoras obesas e do Red Light. Mas onde está a Virgem? Afinal, era a parte mais promissora e misteriosa do título deste post! A Virgem a que me refiro é uma escultura singular embutida na parede da igreja, em que uma cena da Anunciação está representada de forma desafiadora: um anjo envia a pomba do Espírito Santo a Maria, que, abrindo um livro, se vira gentilmente para trás. Entre eles, um vaso de onde saem três lírios brancos. Todos estes elementos (anjo, Maria, pomba e lírios) são atributos típicos da Anunciação - o desafio provém da presença na mão direita do anjo do caduceu (bastão com serpente em volta), do vase e do livro aberto, elementos-chave de mitologia e alquimia. (acho que "a pomba do Espírito Santo" é uma frase que se torna referencial, se repetida mentalmente várias vezes).
Para além da sua beleza plástica, este alto-relevo é notável por uma série de razões:
- simbolicamente, a Anunciação é um dogma central do Cristianismo e uma verdadeira encruzilhada de interpretações esotéricas, alquímicas e mitológicas: afinal, uma mulher vai conceber o Filho de Deus, após ter sido fecundada pelo Espírito Santo. Assustador!
- culturalmente, pelas implicações de pureza e virgindade deste dogma, que tornam esta cena religiosa uma peça-chave na repressão sexual feminina e no conceito geral de sexo enquanto pecado;
- historicamente, por de 1571, data em que foi construída a nova Câmara anexa à Capela de Maria.
Falámos já de crianças, senhoras obesas e do Red Light. Mas onde está a Virgem? Afinal, era a parte mais promissora e misteriosa do título deste post! A Virgem a que me refiro é uma escultura singular embutida na parede da igreja, em que uma cena da Anunciação está representada de forma desafiadora: um anjo envia a pomba do Espírito Santo a Maria, que, abrindo um livro, se vira gentilmente para trás. Entre eles, um vaso de onde saem três lírios brancos. Todos estes elementos (anjo, Maria, pomba e lírios) são atributos típicos da Anunciação - o desafio provém da presença na mão direita do anjo do caduceu (bastão com serpente em volta), do vase e do livro aberto, elementos-chave de mitologia e alquimia. (acho que "a pomba do Espírito Santo" é uma frase que se torna referencial, se repetida mentalmente várias vezes).
Para além da sua beleza plástica, este alto-relevo é notável por uma série de razões:
- simbolicamente, a Anunciação é um dogma central do Cristianismo e uma verdadeira encruzilhada de interpretações esotéricas, alquímicas e mitológicas: afinal, uma mulher vai conceber o Filho de Deus, após ter sido fecundada pelo Espírito Santo. Assustador!
- culturalmente, pelas implicações de pureza e virgindade deste dogma, que tornam esta cena religiosa uma peça-chave na repressão sexual feminina e no conceito geral de sexo enquanto pecado;
- historicamente, por de 1571, data em que foi construída a nova Câmara anexa à Capela de Maria.
Portanto, este alto-relevo foi feito depois de 1566, momento em que milícias iconoclastas destruíram a maior parte do património artístico do edifício, mas foi poupado pela Revolta Protestante de 1578, em que a igreja passou a ser Calvinista. Assim, juntamente com as pinturas do tecto e as cadeiras do Coro (nas quais estão esculpidas inúmeras cenas, entre as quais, das Misericórdias), esta cena da Anunciação é uma das poucas peças sobreviventes ao efeito dos séculos.
Postlúdio
Se há algo que admiro em Amesterdão é a oportunidade que cada um tem de perseguir o estilo de vida que mais lhe apraz. Independentes, abertos e respeitadores da individualidade, os habitantes da capital Holandesa crescem habituados a aceitar as diferenças culturais, o que, comprovadamente, é um dos maiores patrimónios da cidade: era chamada "A Nova Jerusalém", dada a sua receptividade aos muitos pensadores-livres, educados e abastados imigrantes (nomeadamente Judeus) que nela encontraram refúgio às perseguições feitas nos países do Sul Europeu, em meados do séc. XV. Trouxeram conhecimento, dinheiro e espírito de aventura, e lançaram as bases no que seria a Idade de Ouro Holandesa.
A pequena, quase imperceptível, escultura cravada no lado Norte da Oudekerk documenta de forma incrível a fascinante actividade Humana: ideais de pureza, revoluções religiosas, repressão e visitas libertadoras aos centros da fantasia sexual. Que extraordinário paradoxo, a sua presença no Red Light District, tão viva, cheia de cor e preservada por mais de cinco séculos, condenada a encarar a inocência diária das crianças Holandesas, no seu passeio diário pela mão dos pais, mesmo junto às vitrines pecaminosas das senhoras gordas! Toch?
Texto e fotografias de Rafael Fraga ©2013, excepto fotografia do Red Light, por Mario.
rafaelfragamusic |at| gmail.com
Se há algo que admiro em Amesterdão é a oportunidade que cada um tem de perseguir o estilo de vida que mais lhe apraz. Independentes, abertos e respeitadores da individualidade, os habitantes da capital Holandesa crescem habituados a aceitar as diferenças culturais, o que, comprovadamente, é um dos maiores patrimónios da cidade: era chamada "A Nova Jerusalém", dada a sua receptividade aos muitos pensadores-livres, educados e abastados imigrantes (nomeadamente Judeus) que nela encontraram refúgio às perseguições feitas nos países do Sul Europeu, em meados do séc. XV. Trouxeram conhecimento, dinheiro e espírito de aventura, e lançaram as bases no que seria a Idade de Ouro Holandesa.
A pequena, quase imperceptível, escultura cravada no lado Norte da Oudekerk documenta de forma incrível a fascinante actividade Humana: ideais de pureza, revoluções religiosas, repressão e visitas libertadoras aos centros da fantasia sexual. Que extraordinário paradoxo, a sua presença no Red Light District, tão viva, cheia de cor e preservada por mais de cinco séculos, condenada a encarar a inocência diária das crianças Holandesas, no seu passeio diário pela mão dos pais, mesmo junto às vitrines pecaminosas das senhoras gordas! Toch?
Texto e fotografias de Rafael Fraga ©2013, excepto fotografia do Red Light, por Mario.
rafaelfragamusic |at| gmail.com
Em breve:
> O conteúdo simbólico, alquímico e mitológico da cena da Anunciação da Oudekerk de Amesterdão
> A Custódia de Belém
Mais sobre a Oude Kerk e as suas cadeiras do Coro.
> O conteúdo simbólico, alquímico e mitológico da cena da Anunciação da Oudekerk de Amesterdão
> A Custódia de Belém
Mais sobre a Oude Kerk e as suas cadeiras do Coro.